Fiscalização do trabalho escravo ainda é desafio nas cadeias de valor no país
Segundo Heidi Buzato, coordenadora da área social do Imaflora, a inclusão de questões sociais seria um grande avanço no monitoramento de cadeias produtivas no país. Atualmente, no entanto, os compromissos assumidos por empresas nos setores da soja e da pecuária costumam focar mais especificamente em questões ambientais. Nesse sentido, Programas como o Soja na Linha e o Boi na Linha poderiam ser uma oportunidade para uma discussão setorial na Amazônia e no Cerrado, visando promover o trabalho decente nessas cadeias produtivas.
Em 2020, foram libertadas 936 pessoas em situação de trabalho escravo ou análogo ao escravo de um total de 276 estabelecimentos fiscalizados, segundo o Radar SIT do Portal da Inspeção do Trabalho do governo federal. Em 2019, foram 1.131 trabalhadores libertados de um total de 281 estabelecimentos fiscalizados.
Mas a redução no número pode não significar menos casos, mas sim menos fiscalização.
Segundo Mércia Silva, diretora-executiva da InPACTO, organização sem fins lucrativos que mobiliza diferentes setores na promoção do trabalho decente há 15 anos, desde a criação do Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, a violação de uma, duas ou 100 pessoas é sempre uma violação, então, não é correto comparar quantidade de pessoas libertas com quantidade de ações de inspeção. "O que precisamos comparar é a porcentagem do total de locais inspecionados que tinha trabalho escravo, aí sim conseguimos avaliar os números."
Silva explica que, mesmo que nos últimos anos o escopo do trabalho tenha sido ampliado, o fato dos casos no meio rural serem fiscalizados há mais tempo, faz com que ainda sejam mais numerosos (42 mil) do que os casos urbanos (12 mil), já que só começaram a ser inspecionados recentemente.
Com isso, o maior número de pessoas libertadas é no setor da pecuária. "Desde 1995, quando começou a fiscalização, foram encontradas quase 56 mil pessoas em condições análogas à de escravo, das quais cerca de um terço – ou 18 mil pessoas – atuavam no setor. Isso acontece por conta de abertura de novas áreas, a maior parte com desmatamento ilegal. Por isso há tantos casos no Pará", aponta Marcel Gomes, secretário-executivo da ONG Repórter Brasil, cujo objetivo é fomentar reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e trabalhadores no Brasil.
Segundo ele, a fiscalização tem sido cada vez menor desde a reforma trabalhista de 2017 e a extinção do Ministério do Trabalho, além do enfraquecimento dos sindicatos e movimentos sociais, para onde vai a maioria das denúncias", aponta. "Além disso, as denúncias não são todas apuradas, pois falta dinheiro e fiscais. Provavelmente seja ainda maior agora, com a pandemia, pois as pessoas estão mais vulneráveis", completa Gomes. "Há casos de trabalho escravo em todas as regiões do país, em cidades pequenas, médias e grandes e em vários setores econômicos, da indústria ao serviço."
Como explicar
Para o executivo da Repórter Brasil, três pontos podem explicar por que ainda são frequentes casos de trabalho escravo no país. O primeiro é a própria legislação, mais dura do que em outras nações. "Por ter sido o último país a abolir oficialmente a escravidão, era necessário ser mais abrangente. Assim, a lei brasileira considera a jornada cotidiana excessiva de 15 a 18 horas e a dignidade não atendida, como morar com animais, sem alimento ou necessidades básicas."
A Lista Suja do Trabalho Escravo divulgada pelo Ministério da Economia, que atualiza semestralmente os nomes de empresas condenadas por crime de trabalho escravo e infantil, veio para ajudar na melhoramento da cadeia de produção de empresas, mas tem sofrido ataques constantes que a enfraqueceram. "São processos judiciais para tirar o nome da lista, parlamentares da bancada ruralista que lutam para mudar o conceito de trabalho escravo, além da agenda não ser prioridade do Estado", diz Gomes.
O segundo motivo é o histórico de violação do reconhecimento dos direitos dos trabalhadores. Muitos vivem à margem da sociedade, sem conhecimento, e aceitam essas condições por serem vulneráveis. "A maior parte das pessoas libertadas é do Maranhão, estado mais pobre do Brasil", justifica.
A terceira razão para ainda termos casos de trabalho escravo é a imigração de vulneráveis de outros países. "A maior parte dos resgatados ainda é de brasileiros, mas há também bolivianos (especialmente na indústria têxtil), paraguaios, venezuelanos e haitianos (especialmente na construção civil)."
Mércia Silva, da InPACTO, também levanta questões ligadas ao setor produtivo nacional, que tem nível de informalidade muito grande, e alto índice de pobreza e desemprego que levam vulnerabilidade à população. "A concentração de empregos nas regiões Sul e Sudeste, em contraste com os bolsões de pobreza e concentração de terras nas regiões Norte e Nordeste, cria um rol de pessoas precisando de emprego e favorece o aliciamento de grandes grupos sem oportunidade de trabalho."
Associado a isso, há empresas que não desenvolveram mecanismos de rastreabilidade e controle de proteção social ao longo de sua cadeia produtiva. "Elas não se preocupam com as condições de trabalho, processos que garantam o mínimo a esses trabalhadores. Ninguém vigia a ponta", diz a especialista.
Soluções
Para Silva, o primeiro passo para pensar qualquer solução é reconhecer o problema. "Muitos setores ainda negam o problema". Depois de mudar a narrativa, acrescenta, é preciso olhar com atenção objetiva o desafio e investir na solução simples e concreta.
"Empresas e Estado podem trabalhar juntos. Há experiências exitosas em que o negócio reconhece que seus elos/parceiros têm uma fragilidade econômica e criam fundos para ajudar na melhoria produtiva, de infraestrutura, como juros baixos, em parceria com o Estado", diz a executiva. "Mas sempre com fiscalização e transparência para garantir a aplicação do recurso no uso correto."
Silva acrescenta que é importante também pressionar multinacionais, mostrando que estão se beneficiando de cadeias produtivas muito frágeis, que não protegem o trabalhador de exploração do trabalho escravo e infantil. "Precisamos olhar de forma fractal, mesmo quem está na ponta. A indústria química, por exemplo, produz petróleo, mas seu uniforme foi feito na indústria têxtil. E o setor têxtil começou na agricultura, com o algodão. As coisas estão interligadas e é preciso vigilância em toda a cadeia produtiva", explica.
Gomes, da Brasil Repórter, afirma que há ONGs, órgãos públicos e várias frentes pensando em um caminho para resolver o problema. Para ele, é preciso: fiscalização e repressão de órgãos estatais; fortalecer a Lista Suja – em São Paulo, por exemplo, empresas podem perder o CNPJ para operar no estado se forem enquadradas no crime –; educação, para conscientizar empresas, trabalhadores, órgãos do Estado e consumidores (o App Moda Livre, por exemplo, avalia lojistas nesse quesito); punição de atores econômicos; além de políticas direcionadas, como bancos não emprestarem dinheiro a empresas na Lista Suja ou até mesmo não comprar de empresas de quem utilize mão-de-obra escrava.
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